sábado, 15 de julho de 2017

- Carmen não dura mais que dois dias...
Mason cuspiu um pedaço de gêlo e examinou pesaroso
o pobre animal; depois levou a pata da cadela à bôca
e pôs-se a arrancar com os dentes o gêlo cruelmente
incrustado entre seus dedos.
- Nunca soube que prestasse grande coisa um bicho
com um nome difícil como o dela - acrescentou ao concluir
sua tarefa e empurrando Carmen para o lado. Simplesmente
definham e morrem sob o pêso da responsabilidade 
do nome. 
Já se viu levarem a breca bichos que sensatamente 
se chamam Cassiar, Siwash ou Husky? Creio que nunca,
meu caro. Olhem Shookum; por exemplo...
Safa! A magra alimária saltou, e por um triz seus alvos dentes não se fecharam na garganta de Mason.
- Então é assim, heim? - E uma violenta pancada, desfechada com o cabo do chicote atrás da orelha 
do animal, fê-lo cair espichado na neve, onde ficou tremendo
suavemente, uma baba amarela a escorrer das prêsas.
- Como eu ia dizendo, olhe só para Shookum. Èste sim,
é inteligente. Aposto que vai comer a Carmen antes do fim
da semana.
- Aposto outra coisa - disse Kid Malemute virando o pão
congelado pôsto ao fogo para degelar. - Todos comeremos
Shookum antes do fim da viagem. Que diz Ruth?
A índia clarificou o café com um pedaço de gêlo, relanceou
o olhar de Kid Malemute para o marido, fitou os cães,
mas não se dignou a responder. 
Truísmo tão palpável como aquêle não pedia resposta. 
Duzentas milhas de caminho ininterrupto em perspectiva,
alimento escasso para os três, e que dizer dos cães?
Eram mais seis dias que não deixavam outra alternativa.
Os dois homens e a mulher se agruparam junto ao fogo
e deram início a manducação da magra pitança. Deitados
sôbre a neve, mas ainda atrelados (era uma parada no pino
do dia), os cães fitavam gulosamente cada bocado.
- De hoje em diante não haverá mais almôço - disse Kid
Malemute - E convém não deixarmos de ôlho os cães.
Deram para ficar perversos. Pouco lhes importa derrubar
um sujeito. Questão de oportunidade.
- Já fui presidente de uma Liga Epworth e professor
de Escola Dominical... - E aliviado com a descabida
confidência, Mason mergulhou na sonhadora contemplação
de suas fumegantes mocassinas, quando Ruth o despertou,
enchendo-lhe a xícara.
- Graças a Deus, temos chá aos montes! - continuou. -
Vi êsse chá crescer lá longe, no Tennessee. O que não daria
agora para comer um bolinho de fubá, bem quente! 
Mas não se aborreça, Ruth: nem sempre sofreremos fome,
nem você usará mocassinas por tôda vida...
A isto a mulher se iluminou, e seus olhos transbordaram
de um grande amor pelo seu senhor branco - o primeiro
branco que havia conhecido e o primeiro homem que viu
tratar uma mulher como algo que não era uma alimaría
ou uma bêsta de carga.
- Sim, Ruth - continuou o marido, recorrendo a um jargão
macarrônico, único veículo mediante o qual era possível
se entenderem - espere até pormos em ordem isto aqui
e rumarmos para o Lado de Fora. Embarcaremos no barco
do Homem Branco e flutuaremos na Água Salgada. 
Sim, água  braba, água ruim - grandes montanhas dançando
todo tempo para cima e para baixo. E água tão grande, tão longe, tão longe... Você viaja dez sonos, vinte sonos, quarenta sonos (e gráficamente enumerou os dias nos dedos) - todo tempo água, água ruim. Depois você chega
a uma grande aldeia, cheiinha de gente, um enxame 
de mosquitos no verão... E casas - oh, tão altas, tão altas -
dez, vinte pinheiros - xôte!
E parou sem forças, lançando um olhar suplicante  Kid
Malemute; depois, laboriosamente, por meio de sinais,
pôs os vinte pinheiros um em cima do outro. Kid Malemute
sorria com um jovial cinismo; mas os olhos de Ruth
dilataram-se de pasmo, e de prazer. Meio que acreditava
que seu homem lhe mentia numa condescendência carinhosa ao seu pobre coração de mulher...
- Depois, você entra numa caixa...e puff! vai para cima!
- e, à guisa de ilustração, Mason lançou a xícara para o ar,
apanhando-a com a mesma destreza quando caiu. - E ...piff!
vem para baixo! oh, são grandes feiticeiros! Você vai para
Fort Yukon, eu vou para Arctic City - vinte e cinco sonos -
uma corda comprida, todo o tempo - eu pego a corda -
digo, Aló, Ruth, como cai?, e você diz, "E meu bom marido
que está falando? - e eu digo, "É, sim", - e você diz, "Não
posso fazer pão bom, bicarbonato acabou", - e eu digo,
"Olhe no depósito escondido, debaixo da farinha; até logo". -
Você vai ao depósito e acha montes de bicarbonato. Todo
tempo você em Fort Yukon, eu em Arctic City. Eh, feiticeiros!
Ruth sorriu com tamanha ingenuidade à história maravilhosa, que os dois homens romperam em risadas.
Uma briga de cachorros interrompeu o relato das maravilhas
do Lado de Fora, e quando os ruidosos combatentes
se separaram, ela estalou o chicote sôbre os trenós: tudo
estava pronto para a caminhada.
- Ande, Balby, Você aí! Vamos! - gritava Mason manejando
destramente o chicote; e enquanto os cachorros ganian baixinho sob as trelas, com a sua longa vara de tanger
desentalou o trenó imobilizado no gêlo. Ruth vinha atrás
com a segunda parelha, e Kid Malemute, que ajudara
na partida, fechava a retaguarda. Homem forte, bruto
que êle era, capaz de derrubar um boi de um só golpe,
no entanto não podia ver alguém bater nos animais;
ao contrário, êle os encorajava como raramente fazem os guias de cães; mais que isso, ficava a ponto de chorar
quando os via sofrer.
- Vamos, adiante, vocês aí, seus brutinhos de pés doridos! -
murmurava êle depois de várias tentativas ineficazes para
dar saída ao trenó. 
Mas a sua paciência foi enfim recompensada, e embora
ganissem de dor, os cães se apressaram em juntar-se
aos companheiros.
A conversa caiu: a labuta do caminho não permite essa 
extravagância. E entre tôdas as mortíferas trabalheiras,
a pior é abrir caminho na Terra do Norte. Feliz o homem
que pode arrostar um dia de viagem ao preço do silêncio,
isso mesmo, em trilha batida.
Entre os trabalhos mais penosos, o de abrir caminho 
é sem dúvida o mais duro. A cada paso o enorme sapato palmípede se afunda, até a neve nivelar-se com o joelho.
depois para cima, direito para cima (o desvio de uma fração de polegada é um infalível precursor de desastre), o sapato
tem que levantar-se até a superfície; a seguir, para a frente
e para baixo, e enquanto o outro pé se levanta perpendicularmente, questão de meia jarda. Quem isto
experimenta pela primeira vez, se casualmente evita colocar
os sapatos numa perigosa proximidade e não mede
a distância da base traiçoeira, desistirá, exausto, após uma centena de passos; quem puder ficar um dia inteiro afastado
do caminho dos cães, bem pode, à noite, enfiar-se no seu saco de dormir com a consciência tranqüila e um orgulho
que passa todo entendimento; e o que viaja vinte sonos
na Trilha Comprida é digno de que o invejem os deuses.

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