segunda-feira, 12 de junho de 2017

O Chinês, repeti a mim mesmo, não há dúvida,
tem o domínio completo dos dados que ele mesmo
esculpiu, é dono e senhor dos mais indecifráveis
designios do destino, eles o obedecem incondicionalmente.
Os mais poderosos jogadores enfureceram-se 
e queixaram-se de Chale, após a última jogada. A sala
inteira se agitou num arroubo de despeito; o protesto
amordaçado dessa massa de seres que fora golpeada
pela sombra invencível do destino, encarnada na figura
fascinante de Chale, esteve a ponto de se transformar
num banho de sangue. Um só grande infortúnio pode mais
do que milhares de triunfos dispersos, e os atrai e prende
às suas entranhas enfurecidas até serem untados
com azeite incandescente e funéreo. Todos esses homens
sentiam-se feridos com a última vitória do chinês, e todos
lhe haviam arrancado a vida aos trancos. Eu mesmo -
incitado pelo despeito - odiei o Chale com todo rancor
naquele instante. 
Seguiu-se uma rodada de dez mil soles. Todos tremeram
de espectativa, medo e uma misericórdia infinita,
como se fôssemos presenciar algo grandioso. A tragédia
se revolvia, sôfrega, ao longo da pele. As pálpebras
tremeram, quase vertendo lágrimas puras. Os rostos
tornaram-se azul-violáceos de incerteza. Chale jogou
os dados. E só com este lance, duas cenas surgiram 
sobre o veludo. Que sorte!
Percebi alguém abrindo caminho ao meu lado, afastando-me
para chegar até a mesa, pressionando-me de forma brutal,
como se uma energia irresistível e fatal impulsionasse
o intruso a tal procedimento. Quem estava ao meu lado
sofreu a mesma humilhação provocada pelo desconhecido.
O chinês em vez de recolher o dinheiro que ganhara
revelou o maior desprezo, e como que movido 
por um recurso, virou o rosto imediatamente em direção
do novo concorrente. Chale mudou de fisionomia.
Os olhares dos homens chocaram-se, como dois bicos
de ave que se tocassem no ar.
O forasteiro era um homem alto e de proporção harmoniosa;
um grande crânio numa cabeça munida de um maxilar
inferior que repousava recolhido e armado 
por uma dentadura capaz de mastigar cabeças e troncos
inteiros. O declive das bochechas alargava-se de cima
para baixo. Os olhos pequenos recuavam para logo
acometer em insuspeitas investidas; as pupilas sem cor
pareciam duas conchas vazias; a pele bronzeada,
cabelos soltos, nariz adunco, testa agitada. 
Parecia provocante, detentor de sugestões sedutoras.
O homem causava uma apreensão mortificante,
apesar da beleza. Qual era sua origem? Não revelava
nenhuma. aquele peregrino não posuia nenhuma pátria étnica.  
Tinha um inegável traço mundano de jogador
irrepreensível, com seu vestir correto, a distinção
e o desenfado requerido pelos seus modos.
Logo que esse personagem ocupou seu espaço 
na mesa de jogo, todo o gás envenenado de embriagês
e cobiça que respirávamos na sala se dissipou 
de imediato. 
Que oxigênio secreto trazia aquele homem? Se pudesse
descrever o ar, diria que era sereno e agradavelmente azul.
Recobrei a consciência, entre um sopro fresco 
de renovação sanguínea e alívio. 
Senti que me libertava de algo. Houve um remanso 
no semblante de todos. O poder de Chale e todas as suas posturas de sortilégio terminaram.
Contudo, alguma coisa começara agora, uma sensação
de curiosidade primeiro, depois de penosa inquietação
provocada, sem dúvida, pela presença do novo jogador.
Sim, pois, ele trazia um propósito esmagador,
algum desígnio inexplicável.
O asiático estava transformado, desde que viu 
o desconhecido não voltou a encará-lo. Eu podia
jurar que ficou com medo e que nele, mais do que em qualquer outro, o efeito repulsivo e a aversão
que o homem despertava, foi muito maior para dissimular.
Chale o odiava, sentia temor. Essa é a palavra: tinha medo.
Além do mais, ninguém havia visto o cavalheiro
naquela casa de jogo. Chale nem sequer o conhecia,
por essa razão odiava a sua presença.
O apostador começou a respirar com dificuldade,
como se estivesse asfixiado. Arquejava olhando fixamente
o chinês que parecia triturado por aquele olhar, destruído,
reduzindo a carvão barato toda a sua personalidade moral,
a confiança em si mesmo, a sua beligerância triunfadora.
Chale, perplexo como um menino pego em flagrante,
movia os dedos na concha da sua mão direita hesitante,
como se desejasse que caíssem impotentes.
O círculo, aos poucos começou a convergir os olhares
para o forasteiro que ainda não pronunciara nenhuma
palavra. Fez-se silêncio.
Por fim, o recém-chegado disse, dirigindo-se ao chinês:
- Quanto tem em sua banca?
Chale piscou fazendo um trejeito apocalíptico e ridículo
de desamparo, como se fosse receber uma bofetada
mortal. Virando-se, balbuciou algo, sem saber o que dizia.
- Está tudo aquí. 
A banca contabilizava mais ou menos cinquenta mil soles.
O desconhecido mencionou a soma, retirou um valor igual
da sua carteira e com superioridade dispôs sobre a mesa,
efetuando sua aposta diante do espanto dos circunstantes.
O chinês mordeu os lábios e, evitando sempre o rosto
do adversário, mexeu os seus cubos de mármore.
Ninguém quis acompanhar a aposta ousada e monstruosa.
O único apostador solitário, sem ninguém que, absolutamente ninguém senão o chinês, pudesse admoestá-lo, tirou do bolso o seu revólver, e aproximou-o
da cabeça de Chale, com o dedo no gatilho. 
Ninguém, repito, percebeu essa espada de Dámocles
que ficou suspensa sobre a vida do asiático. Pelo contrário,
todos viram o perigo pendente sobre a fortuna 
do desconhecido, pois a sua derrota estava determinada.
Lembrei o que antes sussurraram na sala:
- As apostas mais altas vão sempre para Chale. Ninguém
consegue ganhar dele.
Era  sorte? Conhecimento? Não sei. Mas agora eu era 
o único que previa a vitória do chinês.
Ele lançou os dados. Oh o flanco e a costa, o ombro
e o semblante do jogador! De novo, e com mais eloquência,
repete-se diante dos meus olhos e da minha alma,
o espetáculo magnífico, a curva anatômica, a polarização
de toda a vontade que dirige, doma e subjuga
os mais inextricáveis designios do destino. De novo essa
partida simultânea dos dados diante dos mesmos termos
aleatórios da aposta. Abri os olhos para verificar se a sorte
iria agraciar mais uma vez aquele jogador exímio.
Os mármores rolaram, rolaram.
O revólver aguardava. O apostador não olhava os dados:
mirava apenas, fixo, implacavelmente  terrível, a testa
do asiático.
Diante do desafio, que ninguém notava, do revólver
contra o par de dados que pintaria o número se unindo
à invencível sombra do destino, encarnada na figura
de Chale, qualquer um poderia assegurar que eu
permanecia ali. Mas não, não estava.
Os dados pararam. A morte e o destino deixaram todos
boquiabertos.
Dois ases!
O chinês começou a chorar como uma criança.

tradução: Jorge Simões

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