terça-feira, 24 de maio de 2016

Foi o último dia que Alicia esteve de pé. No dia seguinte
amanheceu desacordada. O médico de Jordão a examinou
com toda a atenção, recomendando muita calma e repouso
absolutos.
- Não sei - disse para Jordão na porta da casa, em voz ainda baixa. 
- Tem uma grande debilidade que não consigo explicar,
e sem vômitos, nada...se amanhã ela acordar igual a hoje,
você me chama depressa. -
No dia seguinte ela piorou. Houve consulta. Constatou-se 
uma anemia agudíssima, completamente inexplicável.
Alicia não teve mais desmaios, mas ia visivelmente
andando para a morte. Durante o dia todo, o quarto estava
com as luzes acesas e em total silêncio. As horas se passavam sem se ouvir o mínimo barulho. Alicia dormitava.
Jordão vivia quase que definitivamente na sala, também
com as luzes acesas. Andava sem cessar de um extremo para outro, com incasável obstinação. O tapete abafava
seus passos. 
Algumas vezes entrava no quarto e continuava seu mudo
vaivém ao longo da cama, olhando para sua mulher
cada vez que caminhava na sua direção. 
Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações,
confusas e flutuantes no início, e que desceram depois
até o chão. A jovem, de olhos desmesuradamente abertos,
não fazia senão olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama. Uma noite ela ficou repentinamente
com o olhar fixo. Em seguida abriu a boca tentando gritar,
e suas narinas e lábios se molharam de suor.
- Jordão!, Jordão! - gritou, rígida de espanto, sem parar
de olhar o tapete. 
Jordão correu para o quarto, e, ao vê-lo aparecer, Alicia
deu um brado de horror.
- Sou eu, Aliciam sou eu! -
Alicia olhou para ele com olhar extraviado, olhou para o tapete, voltou a olhar para ele, e depois de um longo
momento de estupefacta confrontação, serenou.
Sorriu e pegou entre as suas as mãos do marido, fazendo
caricias e tremendo. 
Entre suas alucinações mais obstinadas, houve um antropoide, apoiado no tapete sobre os próprios dedos,
que mantinha os olhos fixos nela.
Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles,
uma vida que se acabava, desangrando-se dia após dia,
hora após hora, sem saber absolutamente por quê.
Na última consulta, Alicia jazia em estupor, enquanto eles
a pulseavam, passando de um para outro o pulso inerte.
Observaram-na um largo momento em silêncio
e encaminharam-se para a sala.

A Almofada de Penas - hidrográfica e esferográfica - (re-leitura de gravura de Francisco de Goya, da série "Os Disparates")


A Almofada de Penas - detalhe


- Pst... - deu de ombros, desanimado, seu médico.
- é um caso sério...pouco se pode fazer... -
- Era só o que me faltava - gritou Jordão e tamborilou
bruscamente sobre a mesa.
Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia,
que se fazia mais grave pela tarde, mas que cedia sempre
nas primeiras horas da manhã. 
Durante o dia, sua doença não avançava, mas de manhã
ela amanhecia lívida, quase em síncope.
Parecia que unicamente à noite a sua vida se fosse
em novas asas de sangue. Tinha sempre ao acordar
a sensação de sentir-se derrubada na cama com um milhão
de kilos por cima. 
A partir do terceiro dia esse desmoronamento
não a bandonou mais. Apenas podia mexer a cabeça.
Não deixou que pegassem na sua cama, nem sequer
que arrumassem a almofada. Seus terrores crepusculares
avançavam na forma de monstros que se arrastavam
até sua cama e subiam com dificuldade pela colcha.
Perdeu depois o conhecimento.
Nos dias finais, delirou sem cessar a meia-voz.
As luzes continuavam fúnebres e acesas
no quarto e na sala.
No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio
monótono que saia da cama, e o rumor abafado dos eternos
passos de Jordão.
Alicia morreu, por fim.
A empregada, que entrou depois para desfazer a cama,
já vazia, olhou um momento com estranheza 
para a almofada.
- Senhor! - chamou ao Jordão em voz baixa. -
- Na almofada há manchas que parecem ser de sangue. -
Jordão se aproximou rapidamente e se agachou. Efetivamente, sobre a fronha, de ambos os lados 
da cavidade, que tinha deixado a cabeça de Alicia, se viam
algumas manchinhas escuras.
- Parecem picadas - murmurou a empregada, 
depois de um momento imóvel na observação.
- Aproxime-o da luz - disse Jordão.
A moça levantou a almofada, mas em seguida deixou-a cair,
e ficou olhando para ele, lívida e trêmula.
Sem saber por quê, Jordão percebeu que seus cabelos
se eriçavam.
- O que é que há? - murmurou com voz rouca.
- Pesa muito - falou a empregada, sem parar de tremer.
Jordão levantou a almofada; pesava extraordinariamente.
Saíram com ela, e sobre a mesa da sala Jordão cortou
a fronha da capa. As penas superiores voaram, 
e a empregada deu um grito de horror com a boca
inteiramente aberta, levando as mãos crispadas às bandos.
Sobre o fundo, entre as penas, mexendo devagar os pés aveludados, havia um animal monstruoso, uma bola viva
e viscosa. Estava tão inchada que quase não se lhe via a boca.
Noite após noite, a partir do dia em que Alicia 
tinha ficado doente, ela tinha aplicado sigilosamente 
sua boca, sua tromba, melhor dizendo, às têmporas
da mulher, chupando-lhe o sangue. A mordida era quase
imperceptível. A remoção diária da almofada tinha impedido
sem dúvida seu desenvolvimento, mas assim que a jovem
não conseguiu mais se mexer, a sucção foi vertiginosa.
Em apenas cinco dias e cinco noites, tinha esvaziado Alicia.
Esses parásitos das aves, diminutos no seu meio habitual,
chegam a adquirir proporções enormes 
em certas condições.
O sangue humano parece ser para eles
particularmente favorável, e não é raro encontrá-los
nas almofadas de penas.

A Almofada de Penas - hidrográfica e esferográfica - (re-leitura de uma gravura de Adolph Mensel)


A Almofada de Penas - detalhe


A Almofada de Penas - detalhe


A Almofada de Penas - detalhe