terça-feira, 12 de julho de 2016

- São uma parte do todo. Tinhamos que fazer
algumas coisas impossíveis. Fizemos muitas que pareciam
impossíveis. Mas às vezes os que estão em nosso flanco
nos atacam. Às vezes não há artilharia suficiente. Ás vezes
somos mandados para fazer coisas sem força suficiente,
como em Celadas. São essas circunstâncias que resultam
em fracassos. Mas no fim das contas não foi um fracasso.
Ela não respondeu e ele acabou de comer.
Soprava um vento fresco nas árvores, e estava frio
na varanda. Ele recolheu os pratos nos cestos e limpou a boca com o guardanapo. Limpou as mãos cuidadosamente
e pôs o braço na cintura dela. Ela chorava.
- Não chore, Maria. O que aconteceu é passado.
Precisamos pensar no que temos de fazer. Temos muito
que fazer.
Ela continuou calada, o rosto iluminado pela luz da rúa,
olhando para a frente.
- Precisamos nos vigiar contra romantismos. Este lugar
aquí é um exemplo de romantismo. Precisamos parar
com o terrorismo. Precisamos continuar evitando cair
novamente em aventureirismos revolucionários.
A moça continuava calada. Ele olho aquele rosto em que tinha pensado durante os meses em que pôde pensar 
em alguma coisa que não fosse o seu trabalho.
- Você fala como um livro - ela disse - Não como ser humano.
- Desculpe. São lições que aprendí. Coisas que sei que preciso fazer. Para mim é mais real do que tudo.
- Para mim só os mortos são reais - disse ela.
- Prestamos homenagem a eles. Mas eles não são importantes.
- Olhe você falando de novo como um livro - disse ela
zangada. - Seu coração é um livro.
- Desculpe Maria. Pensei que você entendesse.
- Só entendo os mortos.
Ele sabia que não era verdade porque ela não os viu mortos
como ele viu, na chuva no olival de Jarama, no calor das casas bombardeadas de Quijorna, e na neve em Teruel.
Mas sabia que ela o culpava por estar vivo quando Vicente
não estava mais; e de repente, na parte humana ínfima
e incondicional que restara dele, e que ele não sabia que ainda guardava, sentiu-se profundamente ofendido.
- Tinha um passarinho - disse ela - Um tordo-poliglota na gaiola.
- Tinha. Eu o soltei.
- Que pessoa mais caridosa! - disse ela em zombaria.
- Os soldados são todos sentimentais?
- Sou bom soldado.
- Acredito. Falou como bom soldado. Que espécie 
de soldado era meu irmão?
- Dos melhores. Mais alegre do que eu. Não fui alegre.
Falha minha.
- Mas faz auto-crítica e fala como livro.
- Seria melhor que eu fosse mais alegre. Nunca aprendi isso.
- E os alegres morreram todos.
- Não. Basilio é alegre. 
- Então vai morrer - disse ela.
- Maria, não fale assim. Você fala como derrotista.
- E você fala como livro. Não toque em mim, por favor.
Você tem coração duro e detesto você.
Ele sentiu-se ofendido pela segunda vez, ele que pensara
ter um coração duro que nada podia ofender nunca mais,
a não ser a dor. 
Sentou-se na cama e se inclinou para a frente.
- Levante o meu suéter - disse ele.
- Eu não.
Ele levantou o suéter nas costas e se encurvou. - 
Veja, Maria. Isto não é livro.
- Não posso ver. No quero ver.
- Ponha a mão embaixo nas minhas costas.
Ele sentiu os dedos dela tocando aquele ponto afundado
onde podia caber uma bola de beisebol, a cicatriz horrenda
do ferimento em que o cirurgião tinha enfiado a mão enluvada para limpar, ferimento que ia de um lado da cintura ao outro. 
Sentiu o toque dos dedos dela e se encolheu. No momento
seguinte ela o abraçava e o beijava, os lábios como uma ilha  no repentino mar branco de dor que surgiu, invadindo-o,
como uma onda brilhante e insuportável.
Os lábios ainda nos dele; depois a dor de repente cessando
e ele sentado sozinho, molhado de suor, e Maria chorando
e dizendo - Oh, Enrique, me perdoe. Me perdoe, Enrique.
- Tudo bem. Nada a perdoar. Mas não foi parte de nenhum livro.
- Dói sempre?
- Só quando sou tocado ou faço movimentos bruscos.
- É a medula?
- Quase não foi afetada. Os rins também estão inteiros.
O fragmento de granada entrou de um lado e saiu pelo outro. Tem outros ferimentos mais embaixo e nas pernas.
- Me perdoe, Enrique.
- Não há o que perdoar. Mas não tem graça eu não poder
me deitar com mulher. E lamento não ser alegre.
- Podemos fazer amor quando isso aí melhorar.
- Podemos.
- E será bom.
- Será.
- E eu vou cuidar de você.
- Não. Eu vou cuidar de você. Isto aqui não me incomoda em nada. É só a dor do toque e do movimento. 
 Nâo me incomoda. Agora precisamos trabalhar.
Temos que sair daqui. Tudo o que tem aqui precisa ser retirado esta noite. Vamos aguardar tudo em algum outro lugar que não esteja sob vigilância e também em que 
o material não se estrague. Não vamos precisar dele tão cedo. Temos muito que fazer antes de chegarmos novamente a essa etapa. Precisamos educar muitos.
Até lá esses cartuchos podem não prestar mais. O clima aqui estraga as espoletas. Precisamos sair já. Fui idiota
ficando aquí até agora. O idiota que me pôs aqui vai ter que
prestar contas ao comitê.
- Estou encarregada de levar lá esta noite. Acharam que esta casa era segura para você passar o dia hoje.
- Esta casa é um perigo.
- Então vamos sair já.
- Já deviamos ter saído.
- Me beije, Enrique,
- Só se for com muito cuidado.
Na cama, no escuro, conduzindo-se com cuidado,
os olhos fechados, os lábios dele e os dela em contato,
a felicidade sem dor, a volta para casa de repente sem dor,
a sensação de estar vivo voltando sem dor, o conforto
de ser amado e ainda sem dor; era um vazio de amar,
agora não mais vazio, e os dois jogos de lábios no escuro
encontrando-se felizes e com doçura, no escuro e no calor da casa, e sem dor, no escuro; de repente soa a sirene
cortante, despertando toda a dor do mundo. Era a sirene 
real, não a do rádio. Não era uma sirene. Eram duas.
Vinham cada uma de um lado da rua.
Ele virou a cabeça e depois se levantou. Achou que a volta para casa durara pouco.
- Saia pelos fundos para o terreno baldio - disse ele.
- Depressa. Eu atiro daqui de cima para tentar enganá-los.
- Não, você sai - disse ela - Saia, por favor. Fico aquí e atiro;
assim eles pensam que você está na casa.   

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