quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

CASA TOMADA

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei
com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
- Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte
dos fundos. Ela deixou cair o tricô e olhou para mim
com seus graves e cansados olhos.
- Tem certeza?
Assenti
- Então - falou pegando as agulhas - teremos que viver
deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela
demorou um instante para retornar a sua tarefa. Lembro-me
de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava
desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias), fechávamos 
alguma gaveta das cômodas e nos mirávamos com tristeza.
-Não está aqui
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro
lado da casa. Porém também tivemos algumas vantagens.
A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos
bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das once horas já estávamos de brazos cruzados. Irene foi
se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar
a preparar o almoço.
Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos 
para comermos fríos à noite. Ficamos felizes, pois era
sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha
para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene
e as travessas de comida fria. Irene estava contente porque
sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco
perdido por causa dos livros, mas, para não afligir 
minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso
me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene
que era mais confortável.
As vezes Irene falava:
- Olha esse ponto que acabei de inventar, parece o desenho
de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse
o mêrito de algum selo de Eupense & Malmédy.
Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar.
Pode-se viver sem pensar.
 

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