terça-feira, 7 de setembro de 2010

"BUENA MEMÓRIA" - Ensaio MARCELO BRODSKY - Argentina Textos: Marcelo Brodsky / Martín Caparrós / José Pablo Feinmann / Juan Gelman

TRIMANO - "Pulseio" - nanquim e colagem

Foi num dos meus primeiros encontros com a "nova Argentina". Eu estava voltando ao país depois de sete anos. Tudo me surpeendia, me falava das suas mudanças. A Argentina desse momento, fazia o possível para demostrar que não era mais aquêla que eu tinha deixado, que tinha matado tanta gente. A "nova Argentina" era o resultado dessas mortes, por isso fazia tudo para falar das suas vidas. / Essa tarde, alguma coisa da nova aparecia na velha. Essa tarde na Aula Magna do Colegio Nacional*, cem ou doscentos alunos que pareciam tão pequenos, nos perguntavam como tinha sido a história daqueles, que para eles, era uma história alheia. / Era 1984**, não tinha passado tanto tempo, mas para esses jovens argentinos eram os detalhes de um mito. Um mito de um modo geral, não precissa de detalhes, não os exibe. O mito daquêles anos estava feito de afirmações gerais: anjos e demônios sem circunstâncias definidas, figuras coletivas sem uma história pessoal. Esses estudantes, aquela tarde, na Aula Magna, não acreditavam que aqueles estudantes tinhamos sido tão parecidos a êles, e que por azares da história, vivimos uns anos em que a vontade parecia capaz de mover montanhas. / Essa tarde durou muito pouco. Depois vieram longos silêncios, e demoramos 12 anos para voltar ao Colegio. Não foi casual. Durante esses anos, em geral, nossos companheiros mortos ficaram sem história própria. Os lembramos nas marchas contra seus assassinos e nos aniversários dos seus sequestros, quando apareciam seus rostos no jornal, como se deles, somente tivesse ficado a sua morte. Num poema sobre os mortos da Resistência francesa, Louis Aragon diz "Agora vocês são / apenas uma inscrição nas nossas praças / Agora a lembrança dos seus amores / vai se apagando / Agora vocês somente existem / por ter morrido". / Isso significa que era muito difícil discutir aquêla política - era muito difícil falar a partir desta nova democracia sobre uma época em que a democracia era um valor instrumental. Se evitava falar desses mortos, como sujeitos que tinham optado por uma ação política. Era mais facil transformá-los em vítimas, em objeto da decissão de outros. Falamos de como foram objeto de sequestro, tortura, assassinato, e não falamos de como eram quando estavam vivos, quando escolheram para suas vidas um destino que incluia o perigo da morte, porque acreditaram que deviam atuar dessa maneira. Aquêlas versões da história eram uma forma de "desaparecer" novamente aos desaparecidos. / Demoramos em compreender que, nessa segunda "desaparição" desapareciamos todos. Nossas histórias se perdiam nas deles, que ninguem contava. Era necessário reconstruir suas histórias, contar e contarnos que todos êles foram, antes de seram vítimas, pessoas que tinham, antes das suas mortes, uma vida. / Agora podemos voltar a lembrar. Em espaços e setores diferentes, por individuos ou por grupos, vamos armando uma história. / Também no Colegio Nacional, no final de 96, lembramos aquêles estudantes com uma exposição, com um ato, palavras, abraços e memórias. Essa noite, nos claustros que já não eram tão grandes, as fotos de Marcelo Brodsky foram, quem sabe, o vínculo mais claro, o mais visível. / A fotografia cumpre uma função privilegiada neste esforço. A fotografia nos relata, mostra. Se a foto diz que existimos deve ser porque existimos. / A fotografia vai, pela história, contra o tempo. A fotografia é uma tentativa, sempre em vão de deter o tempo. Em cada foto, aquilo que já não existe e nunca mais existirá se nos apresenta como se ainda existisse. Sentimos por um momento a perplexidade de nos encontrar diante daquilo que perdemos: a emoção desse encontro. Depois, a tristeza. / A fotografia sempre é cruel: nos coloca perante a claridade da sua impotência, muito mais neste caso. Contar a história, contar as nossas histórias, não quer dizer reviver aquêles dias. Esses rostos que Brodsky reproduz, confrontados com os rostos de hoje, não somente nos falam da passagem do tempo por cada um deles. Alí o tempo que passou, não é somente individual, é uma época. / * O Colegio Nacional de Buenos Aires, fundado em 1772, é o instituto de ensino medio mais antigo da República Argentina. Nele se formaram alguns dos protagonistas fundamentais da sua história como Mariano Moreno, Manuel Belgrano e Bernardino Rivadavia. / ** A última ditadura militar, a mais sanguinária de todas, se iniciou em 24 de março de 1976, e se prolongou durante 8 anos até 1983, cuando asumiú a presidência o Dr. Raul Alfonsin, eleito democraticamente. / As organizações de direitos humanos da Argentina estimam que 30.000 pessoas desapareceram sob a ditadura entre 1976 e 1978. / MARTÍN CAPARRÓS - Extraido do album "Buena Memória" - Buenos Aires 1997