quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

COMO SE INVENTARAM OS ALMANAQUES / O encontro do Tempo com a Esperança / para Ana Carolina
MACHADO DE ASSIS
Editôra Mercurio - São Paulo - Brasil 2009 ____________________________________ Programação visual: César Landuchi ____________________________________ Ilustrações: Luis Trimano

nanquim

Some-te, bibliógrafo! Não tenho nada contigo. Nem contigo, curioso de histórias poentas. Sumam-se todos; o que vou contar interessa a outras pessoas menos especiais e muito menos aborrecidas. Vou dizer como se inventaram os almanaques.

nanquim

Sabem que o Tempo é, desde que nasceu, um velho de barbas brancas. Os poetas não lhe dão outro nome: o velho Tempo. Ninguem o pintou de outra maneira. E como há quem tome liberdades com os velhos, uns batem-lhe na barriga (são os patuscos), outros chegam a desafiá-lo; outros lutam com ele, mas o diabo vence-os a todos; é de regra. Entretanto, uma coisa é barba, outra o coração. As barbas podem ser velhas e os corações novos; e vice-versa: há corações velhos com barbas recentes. Não é regra, mas dá-se. Deu-se com o Tempo.

Estudo sobre esculturas de Rogélio Yrurtia - nanquim

Um dia o Tempo viu uma menina de quinze anos, bela como a tarde, risonha como a manhã, sossegada como a noite, um composto de graças raras e finas, e sentiu que alguma coisa lhe batia do lado esquerdo. Olhou para ela e as pancadas cresceram. Os olhos da menina, verdadeiros fogos, faziam arder os dele só com fitá-los. - Que é isto? murmurou o velho.

nanquim

E os beiços do Tempo entraram a tremer e o sangue andava mais depressa, como cavalo chicoteado, e todo ele era outro. Sentiu que era amor; mas olhou para o oceano, vasto espelho, e achouse velho. Amaria aquela menina a um varão tão idoso? Deixou o mar, deixou a bela, e foi pensar na batalha de Salamina. As batalhas velhas eram para ele como para nós os velhos sapatos. Que le importava Salamina? Repetiu-a de memória, e por desgraça dele, viu a mesma donzela entre os combatentes, ao lado de Temístocles. Dias depois trepou a um píncaro, o Chimborazo; desceu ao deserto de Sinai; morou no sol, morou na lua; em toda parte lhe aparecia a figura da bela menina de quinze anos. Afinal ousou ir ter com ela.

Estudo sobre escultura de Antoine Bourdelle - nanquim

- Como te chamas, linda criatura? - Esperança é o meu nome. -Queres amar-me? - Tu estás carregado de anos, respondeu ela; eu estou na flor deles. O casamento é impossível. Como te chamas? - Não te importe o meu nome; basta saber que te posso dar todas as pérolas de Golconda... - Adeus! - Os diamantes de Ofir... - Adeus! - As rosas de Saarão... - Adeus! adeus! - As vinhas de Engaddi... - Adeus! adeus! adeus! Tudo isso há de ser meu um dia; um dia breve ou longe, um dia...

Estudo sobre escultura de Rogélio Yrurtia - nanquim

Esperança fugiu. O Tempo ficou olhando, calado, até que a perdeu de todo. Abrui a boca para amaldiçoá-la, mas as palavras que lhe saíam eram todas de bênção; quis cuspir no lugar em que a donzela pousara os pés, mas não pôde impedir-se de beijá-lo. Foi por esa ocasião que lhe acudiu a idéia do almanaque. Não se usavam almanaques. Vivia-se sem eles; negociava-se, adoecia-se, morria-se, sem se consultar tais livros. Conhecia-se a marcha do sol e da lua; contavan-se os meses e os anos, era, ao cabo, a mesma coisa; mas não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se nomeavam dias nem meses, nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa vestigios no ar.

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- Se eu achar um modo de trazer presente aos olhos os dias e os meses, e o reproduzir todos os anos, para que ela veja palpavelmente ir-se-lhe a mocidade... Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao amor, ainda quando ele brota de ruínas. O Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos.

Estudo sobre escultura de Antoine Bourdelle - nanquim

Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a lingua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos não têm ainda hoje, se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal. - Agora, sim, disse Esperança pegando no folheto que achou na horta; agora já me não engano nos dias das amigas. Irei jantar ou passar a noite com elas, marcando aqui nas folhas, com sinais de cor os dias escolhidos.

nanquim

Todas tinham almanaques. Nem só elas, mas também as matronas, e os velhos e os rapazes, juízes, sacerdotes, comerciantes, governadores, fâmulos; era moda trazer o almanaque na algibeira. Um poeta compôs um poema atribuindo a invenção da obra às Estações, por ordem de seus pais, o Sol e a Lua; um astrônomo, ao contrário, provou que os almanaques eram destroços de um astro onde desde a origem dos séculos estavam escritas as línguas faladas na terra e provavelmente nos outros planeta. A explicação dos teólogos foi outra. Um grande físico entendeu que os almanaques eram obra da própria terra, cuias palavras, acumuladas no ar, formaram-se em ordem, imprimiram-se no próprio ar, convertido em folhas de papel, graças...

Estudo sobre litografia de Debret - nanquim

Não continuou; tantas e tais eram as sentenças, que a de Esperança foi a mais aceita do povo. - Eu creio que o almanaque é o almanaque, dizia ela rindo. Quando chegou o fim do ano, toda a gente, que trazia o almanaque com mil cuidados, para consultá-lo no ano seguinte, ficou espantada de ver cair à noite outra chuva de almanaques. Toda a terra amanheceu alastrada deles; eram os do ano novo. Guardaram naturalmente os velhos. Ano findo, outro almanaque; assim foram eles vindo, até que Esperança contou vinte e cinco anos, ou, como então se dizia, vinte e cinco almanaques.