quarta-feira, 16 de setembro de 2009

MARCUS MELLO - Rio de Janeiro 1971
A TRILHA SONORA DO FIM DO MUNDO
Imundo mundo medonho
O medo canta junto aos pássaros / E no quintal as lavadeiras choram / Num gemido único / Vai confundindo orquestrando quem ouve a melodia, / Trilha sonora do fim do mundo, / Mundo sem sabão: / Imundo mundo medonho. // No canteiro da algonquiana coragem / Alguns soldados penados resistem, / Entrincheirando a ré das novas mistificações / Onde pássaros são bichos de guerra lenta / Em mar tranqüilo de trissos e canções: - Armamentos sacrários despertando anjos distraídos / Que desentendem a marcha do dia em oratórios explosivos.

Ilustração para o poema "A trilha sonora do fim do mundo" - nanquim

Contamos o número de ninhos destruídos / E tocas desarmadas pela relva fluorescente: / - Isso que desdenha em nós nossa emoção / Pendura-se por um fio encravado en todas as estruturas orgânicas / e inextensíveis, / E movimenta o ar e a digestão de helmintos e anfíbios, unidos as / engrenagens / Nós porém (penados ou não) flutuamos ainda distraídos / como os anjos.
O FILHO DO MATADOR DE BOI
No vôo falcão dos tempos
O que pode ser visto sem rastro / Não pode ser colhido entre pombos / Nem na pele real do organismo vivo / A envergadura de vidro lembra um tipo de construção / Fevereira no vôo falção dos tempos // A metade desse dia é impossivel / A casa, sentinela antiga, é na fronteira do país / E guarda o menino, filho do matador de boi. / Já houve chance, já tentei salgá-lo, / Colhi no chão aquela certeza criativa / Destilando da fera, a fúria em seu fígado.

Ilustração para o poema "O filho do matador de boi" - nanquim

Alguém nos salva de nós / E guarda, entre rochedos, o preço do chicote. / Desde ontem ele movê-se engasgado: / Concretizo o desejo de construí-lo como meu / Ou aprendo a aceitá-lo sendo dele, / Vendo nessa remorsiva vontade de dizer, / O escuro distintivo de toda criação paterna. / E de um eterno, vejo dois conflitantes, / Agora um somente, / Igual em todas as criaturas, sendo nelas, / E é simples ver te sozinho, / Agradeço não a ti, que em tudo somos nós, / Mas a mim, alcançando de você minha lembrança, / A mais profunda e resumitiva dos caracóis.

Ilustração para o poema "Perseu das almas" - nanquim

ROSINHA DA VIDA
Sério mesmo são os outros
Essa lágrima a despedaçar-se daquela face / Em pleno sol de conciência amansada / Como um laço de sangue e embriaguez íntegra / Consome as reservas da pacífica consoante, / Sério mesmo são os outros, / Esse de que falo dá os ombros a qualquer carga / E a palavra que carrega é como fogo, / Digo: coisa bruta, amor de doido, / Analogia regenerada em sonho entre cavalo e menino. / Difícil segurar pelas mãos a mínima intempérie / Mas readubará novas relações autoconcretizando-se, / O redemoinho infinito merece perpetuação: / Que chegue perto de nós somente a metade parecida, / Eu ouço palavras antigas reelaboradas pela maré.

Ilustração para o poema "Rosinha da vida" - nanquim

E a viagem continua, trocamos o óleo épicocassilabo, / Mas veja que esforços bélicos trazem as mesmas criações / E o mundo é dividido em duas metades, / As que constroem, e as que sustentam-se em vão. // A vida, rosinha dos tempos, frutífera e agônica, / Traz a última novidade: / Na beira do seu leito, onde amar é permitido / Descarrega-se após o prazer a substância referida, / Já encarregada de manter a engrenagem envelhecida.

Ilustração para o poema "Ilustração III" - nanquim